Luciano Hang e a ópera buffa da política brasileira, por Rogério Melo

Luciano Hang e a ópera buffa da política brasileira, por Rogério Melo

Por Rogério Melo
Para o Por Dentro do RN

Existe um gênero antagônico à chamada “ópera séria”, surgido nas primeiras décadas do século XVIII, em Nápoles, e que depois se expandiu para Roma e para o norte da Itália, chamado de opera buffa.

A ópera buffa é uma forma de ópera cômica. Seu surgimento teve como principal objetivo subverter as características estilísticas da ópera séria, transformando-a em um gênero no qual a escumalha pudesse identificar sua própria semelhança com os personagens inspirados no modo de vida simples da sua gente. Por outro lado, a ópera séria era marcada pelas suntuosas temáticas épicas ou mitológicas, caracterizando-se como um entretenimento orientado à crème da la crème da sociedade italiana da época, ou seja, à nobreza.

Lá pelos idos das últimas décadas do século XVII, os dois gêneros de ópera que seguiam por caminhos evolutivos bastante diferenciados – visto que à medida que a ópera buffa que fora alcançando notoriedade, esse gênero passou a adquirir uma certa autonomia – ambos acabariam por convergir novamente. A ópera buffa passa a assumir características mais aristocráticas, que exigiam muito dos cantores em virtude das composições crescentemente rebuscadas.

Durante os séculos XV e XVI, período histórico no qual está o circunscrito o Renascimento, a Itália passava por uma série de problemas de ordens social, política, econômica e cultural, marcado por guerras, assassinatos, conspirações e assassinatos. E foi justamente nessa época, em 3 de maio de 1469, que nasceu uma das figuras mais importantes para da história universal, Niccolò di Bernardo Machiavelli, ou simplesmente, Maquiavel.

Autor da notável obra O Príncipe, Maquiavel é hoje considerado um dos primeiros cientistas políticos pela forma como pensou a conjuntura política da sua época, caracterizando usa obra como uma teoria do Estado moderno. O diplomata, historiador, filósofo, escritor e artista, passaria boa parte de sua vida realizando viagens diplomáticas no intuito de apaziguar os conflitos que assolavam os estados italianos.

Movido pelo sonho que ver uma Itália unificada, em O Príncipe, Maquiavel denuncia o perigo ao qual estava exposta a península, em razão da sua divisão política em vários estados, à mercê das maiores potências militares europeias. Nessa obra, ele discorre sobre as formas de como conduzir-se nos negócios públicos, tanto internamente, quanto externamente.

Trata-se de um “manual” de como conquistar, mante-se no poder de um principado, onde defendeu a centralização do poder político (e não absolutismo, conforme alguns interpretam) e a melhor forma de administrar o governo. As sucessivas rupturas e mudanças ocorridas nos séculos anteriores ao surgimento dos gêneros musicais já citados, foram responsáveis por profundas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais, culminando com as rupturas no campo ideológico que influenciaram de sobremaneira a produção artística, já no século XVIII.

Dito isto, é importante ressaltar a necessidade de que façamos sempre uma reflexão sobre os fatos históricos que antecedem um fato político atual, analisando-o contextualmente, e nunca isoladamente, sob pena de perdermos de vista sob quais interesses os atores sociais envolvidos estão empenhados em produzir seus efeitos na correlação de forças que caracteriza a Política. A menção aos gêneros operísticos, a partir dos quais fiz esta breve introdução, nos servirá daqui em diante para estabelecer uma analogia ao fato político que se configurou como o mais importante da semana, o depoimento do empresário Luciano Hang.

Mais conhecido como o “Véio da Havan”, Hang é co-fundador e proprietário da Havan, uma das maiores redes de lojas de departamentos do Brasil. Foi eleito pela revista Forbes, no ano de 2020, o 21° mais rico do Brasil. A forma irreverente como se comporta em público, faz do empresário um chamariz da atenção pública em quaisquer lugares que vá, notadamente pela forma extravagante e cafona como se veste. Desde a sua reluzente careca até o terno de cores berrantes nos tons da bandeira brasileira, Hang não se furta de atrair os olhares mais diferenciados expressos em muitos tons de repúdio ou admiração.

Provavelmente, um dos maiores expoentes do bolsonarismo, prestou depoimento na CPI da Pandemia, na última quarta-feira, 29, já alcançou a marca de mais de 1, 6 milhões de visualizações, estabelecendo um novo recorde de audiência na comissão do Senado que apura irregularidades na condução do combate à covid-19. Antes mesmo de começar a depor, o senador e presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), permitiu a exibição de um vídeo institucional da Havan, a pedido do depoente, arrancando de alguns colegas da comissão fortes críticas de que estariam fazendo publicidade para a rede de lojas.

Adotando a estratégia da vitimização, Hang já chegou à CPI com placas em defesa da “liberdade de expressão”, declarando a imprensa esperar dos senadores a permissão para expressar com liberdade a sua versão dos fatos a cada pergunta realizada pelo relator Renan Calheiros (MDB-AL) e demais integrantes da comissão.

A convocação de Hang foi motivada pelo seu suposto envolvimento com o chamado gabinete paralelo, cuja função seria, dentre outras coisas, aconselhar o presidente na difusão ao uso de medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da Covid-19, a fim de evitar a adoção de medidas de isolamento prejudiciais à economia. Hang também foi questionado sobre suas ligações com o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, bem como a operadora privada de saúde, a empresa Prevent Senior, acusada de usar pacientes como cobaias do “tratamento precoce” e adulterado certidões de óbito com o objetivo de omitir a causa mortis dos pacientes por Covid-19.

Segundo as investigações diligenciadas pela CPI, uma dessas certidões adulteradas teria sido justamente a da mãe do depoente, Regina Modesti Hang, conforme afirmara em depoimento prestado no dia anterior, terça (28), Bruna Morato, advogada dos doze médicos que acusam a Prevent Senior de adulterar dados durante a pandemia.

No decorrer do depoimento, os senadores exibiram alguns vídeos de conteúdo apologético ao tratamento precoce, onde o empresário afirma em deles: “Tome a decisão acertada. Eu me cobro hoje que eu poderia ter salvado a minha mãe, de repente, se eu tivesse feito o preventivo”. Hang disse com surpresa que não sabia que o atestado de óbito da sua mãe omitira a real causa da sua morte por covid-19, e que ficara sabendo apenas naquele momento em que estava presente no depoimento.

“Pode ter sido um erro do plantonista, que colocou aquelas doenças. Mas, quando foram fazer o documento que vai para a secretaria de Estado, foi colocado covid-19. Não vejo interesse do hospital de mentir sobre a morte da minha mãe”, afirmou, apresentando um outro documento. Em outros momentos negou enfaticamente não pertencer ao “gabinete do ódio”, ser negacionista, apesar de defender por repetidas vezes o uso do tratamento precoce com medicamentos comprovadamente ineficazes no combate à Covid-19.

Negou também que fosse contra a vacinas, apesar de não estar vacinado contra a doença, alegando ter “alto índice de anticorpos” (importante frisar que a vacinação é recomendada até para aqueles que já se infectaram com o coronavírus, segundo recomendação científica). A sua participação também foi questionada, e negada por ele, na elaboração de um aplicativo chamado TratCov, lançado pelo Ministério da Saúde que prescrevia medicamentos como cloroquina de forma indiscriminada, mesmo havendo registros em vídeo no qual descreve o funcionamento das suas ferramentas.

A despeito das suas inúmeras negativas, e da presença de alguns “cães de guarda” no plenário da CPI para defendê-lo, suas estratégias não parecem ter convencido a opinião pública sobre o seu relevante papel no financiamento de informações falsas sobre a Covid-19, cujo principal objetivo era senão ocultar a gravidade da pandemia para a população brasileira e efetivar sua adesão à falsa possibilidade de controle da crise sanitária pelas vias ofertadas pelo gabinete paralelo a fim de salvar a economia do país.

Enfim, aquele que desde o início já se mostrava um depoimento desnecessário ao enrobustecimento do seu relatório final, se não chegou a confirmar a inapropriação, por outro lado, confirmou-se como uma poderosa ferramenta de propaganda espontânea para a rede de lojas Havan e para as narrativas negacionistas do governo Bolsonoro, corroborando a tese da inocuidade da sua presença, defendida por alguns parlamentares contrários à intimação do Luciano Hang para depor na CPI da Pandemia.

Se nas palavras do próprio presidente do plenário, Omar Aziz, já havia provas suficientes de que o Luciano Hang fora o grande financiador das fake news em prol do tratamento precoce contra a covid-19, porque então mesmo diante de tantas evidências resolvem dar ainda mais espaço na mídia para o empresário?

O depoimento, no fundo, só contribuiu para expor as graves fraturas nos sistemas judiciário e político brasileiros, responsáveis pelo enorme descaso com a situação vergonhosa em que se encontra a questão da concessão pública dos meios de comunicação de massa no Brasil, a desorientação generalizada porque passam as gestões de cada ente federado sem uma diretriz clara no que tange às políticas públicas sanitárias oriundas de uma liderança forte (não necessariamente absolutista) e alinhada com a produção científica das universidades do mundo inteiro, e sobretudo o desprezo pelas vidas humana, vegetal e animal, refletidas nas criminosas investidas do
agronegócio contra o nosso patrimônio natural.

E em expondo as já citadas fraturas, ela se caracterizou, à guisa de ópera buffa, como um teatro midiático que fundiu o grotesco e hilário, numa única peça. Uma ópera buffa protagonizada por uma personagem que mais parecia ter saído das páginas da famosa trilogia de J. R. R. Tolkien, Smeagol – disposto a perseguir seu precioso anel a partir de uma ética supostamente maquiavélica, segundo a qual “os fins justificam os meios” – do que com um respeitável empresário movido por uma causa social disposto as vidas humanas e a economia do país.

Foto: Ilustração/Rogério Melo

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Sobre Rogério Melo, que escreve na coluna In vino veritas, no Por Dentro do RN

Coluna de Rogério Melo para o Por Dentro do RN (In Vino Veritas)

Rogério Melo tem 51 anos, é comunicador social, cientista social e mercadólogo formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Também é mestrando em Ciência da Informação pela mesma instituição. Além disso, Rogério Melo escreve na coluna In vino veritas, no Por Dentro do RN, às sextas feiras; e comenta sobre os fatos políticos do RN e do Brasil. É proibida a reprodução total ou parcial deste texto sem autorização do autor e sem a inserção dos créditos, de acordo com a Lei nº 9610/98.

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