MPT resgata trabalhadora negra que era mantida em situação de trabalho escravo há 72 anos no Rio de Janeiro

MPT resgata trabalhadora negra que era mantida em situação de trabalho escravo há 72 anos no Rio de Janeiro

Uma mulher de 84 anos foi resgatada de condições de trabalho escravo após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro. Nesse período, ela cuidou da casa e de seus moradores, todos os dias, sem receber salário, segundo a fiscalização.

De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Previdência, essa é a mais longa duração de exploração de uma pessoa em escravidão contemporânea desde que o Brasil criou o sistema de fiscalização para enfrentar esse crime em maio de 1995. Nos últimos 27 anos, foram mais de 58 mil resgatados pelo poder público.

Quando a trabalhadora, que é negra, passou a atuar para a família, a Lei Áurea (1888) – aniversariante desta sexta (13.mai.2022) – tinha apenas 62 anos, o presidente era Eurico Gaspar Dutra e o Rio, a capital do país. A ação de fiscalização começou em 15 de março e ainda não terminou, uma vez que está em negociação o pagamento dos salários e direitos atrasados. Mas configurou a situação como trabalho análogo ao de escravo.

O resgate foi coordenado pela Auditoria Fiscal do Trabalho no Rio e contou com a participação do Ministério Público do Trabalho e do programa Ação Integrada, que garante atendimento psicossocial. Ela está em um abrigo público sob acompanhamento desde a semana passada.

De acordo com a fiscalização, seus pais trabalhavam em uma fazenda no interior do estado que pertencia à família Mattos Maia. Aos 12 anos, ela se mudou para a residência do casal proprietário para realizar serviços domésticos. Quando faleceram, migrou para a casa da filha deles, onde manteve suas atividades, incluindo o cuidado com as crianças.

Hoje, atua como cuidadora da empregadora, apesar de ambas terem idade semelhante. Ao todo, serviu três gerações da família, uma vez que, na residência na Zona Norte da cidade, também reside o neto dos patrões originais. Apontado como empregador, André Mattos Maia foi procurado pela reportagem por mensagem e ligações em dois números de telefone, mas não atendeu e nem respondeu. Caso retorne, atualizaremos a reportagem com o seu posicionamento.

Vizinhos confirmaram que ela era tratada como empregada doméstica pelos moradores da casa e não como um membro da família, como eles defendem.

A fiscalização também ouviu a irmã e uma sobrinha da trabalhadora, que confirmaram a relação de emprego e contaram que ela havia se mudado com a família para o Rio sob a esperança de estudar ainda pequena. Segundo elas, o empregador controlava visitas e telefonemas, dificultando o contato com o mundo externo.

Diante de um pedido para que a trabalhadora falasse a sós com a fiscalização, o patrão a pegou pelo braço e, de forma, veemente afirmou: “você não diga que trabalhou para a minha mãe, senão você vai foder com ela”. De acordo com o auditor fiscal do trabalho, Alexandre Lyra, que coordenou a ação, os empregadores afirmaram que os serviços domésticos não eram trabalho, mas uma colaboração voluntária no âmbito familiar.

“Em casos como este ouvimos sempre a afirmação de a vítima é ‘como se fosse da família’. Mas para essa pessoa da família não foi permitido estudo, nem laços de amizade externos ou mesmo conduzir a própria vida. Essa pessoa da família dorme em um sofá, em um espaço improvisado como dormitório em uma antessala do quarto da empregadora, de quem ela era cuidadora”, diz.

Na avaliação de Yasmim França, coordenadora e psicóloga social do projeto Ação Integrada, muitas vezes os trabalhadores têm a compreensão de que não são membros da família, mas avaliam que, em um cenário sem opções, essa foi a única que tiveram. “Isso gera um sentimento de lealdade, há uma servidão por dívida de gratidão”, afirma.

Durante mais de sete décadas, a trabalhadora não teve contato com outro tipo de relacionamento social, não teve protagonismo sobre sua vida, recebendo tarefas e ordens de terceiros. Sua vida passou a ser uma “sombra”, como analisa Lyra. Diante disso, o mundo do “lado de fora” pode ser desafiador.

Pessoas resgatadas após longos períodos não raro pedem para voltar ao convívio dos empregadores porque aquela é a única vida que conheceram. Isso tem sido usado por patrões como justificativa de que a relação entre eles era normal e saudável. A trabalhadora de 84 anos declarou à fiscalização estar preocupada com a empregadora, que ficaria sozinha e sem ninguém para cuidar dela. Ela, que não se via como alguém que foi escravizada, chegou a pedir para voltar.

Yasmim França, que está acompanhando o caso da trabalhadora, diz que, o pós-resgate é um momento para que as vítimas pensem em projetos de vida e fortaleçam vínculos familiares e comunitários. Uma caminhada longa. Vale ressaltar que, de acordo com o ordenamento jurídico nacional e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, o consentimento da vítima é irrelevante para configurar trabalho escravo.

“No trabalho escravo doméstico, o abuso de vulnerabilidade é levado a um extremo que pode dificultar o reconhecimento da condição pelas próprias vítimas e mesmo a atuação dos órgãos de repressão. É importante a atuação do Estado para a necessária assistência e proteção a fim de que elas sejam acolhidas e possam sair dessa situação”, avalia o procurador do Trabalho, Thiago Gurjão.

Trabalho escravo no Brasil

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a quem pratica o crime de trabalho escravo. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

O grupo especial móvel de fiscalização, que completa 27 anos neste mês de maio e é a base no combate a esse crime no país, conta com a participação da Inspeção do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União.

Os 58 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.

Por Leonardo Sakamoto e Daniel Camargos para o UOL
Foto: Reprodução

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